Segue
um excelente artigo sobre a situação real da Teologia da
Libertação, escrito por Clodovis Boff, o qual foi meu professor
durante dois anos, e por ser um grande teologo católico, tenho
grande admiração. Esse artigo foi alvo de críticas severas por
parte da ala radical da Teologia da Libertação, muitos utilizando
Argumentum ad hominem e
deixando a questão teologica limadas a questões politicas, enquanto
Clodovis intelectualmente segue uma linha quase anagogica e
profudamente evangélica.
Teologia da
Libertação e volta ao fundamento
Fr. Dr. Clodovis M.
Boff, OSM.
Síntese: Quer-se
mostrar aqui que a Teologia da Libertação partiu bem, mas, devido à
sua ambigüidade epistemológica, acabou se desencaminhando: colocou
os pobres em lugar de Cristo. Dessa inversão de fundo resultou um
segundo equívoco: instrumentalização da fé "para" a
libertação. Erros fatais, por comprometerem os bons frutos desta
oportuna teologia. Numa segunda parte, expõe-se a lógica da
Conferência de Aparecida, que ajuda aquela teologia a "voltar
ao fundamento": arrancar de Cristo e, a partir daí, resgatar os
pobres.
Queremos aqui, numa
primeira parte, fazer um questionamento de fundo da Teologia da
Libertação (=TdL). A intenção não é desqualificar a TdL, mas,
antes, defini-la de modo mais claro e refundá-la sobre bases
originárias. Só assim se podem garantir seus ganhos inegáveis e
seu futuro.
Apresentaremos, num
segundo momento, a lógica que o Documento de Aparecida pôs em
operação. Entendemos mostrar por aí como a TdL pode ser
reconduzida aos seus fundamentos, ser incorporada num horizonte mais
amplo e, assim, assegurar o que ela tem de melhor.
Reconhecemos que a
análise que faremos da TdL é um tanto trabalhosa e sinuosa,
enquanto a de Aparecida é mais fluente e linear. De todos os modos,
andaremos aqui a grandes passadas, sem podermos explicar tudo e nem
nos determos em detalhes.
I. TdL e sua funesta
ambigüidade
A questão: ambigüidade
epistemológica acerca do fundamento
Falando em TdL, não
visamos aqui a TdL ideal, tal como foi projetada e proposta por seus
founding Fathers, sobretudo por Gustavo Gutiérrez. Falamos mais
precisamente da TdL “realmente existente”, a que tem atrás de si
quase quarenta anos de caminhada e cuja evolução já deixa ver
traços exigindo crítica e retificação.
Ora, a atual TdL,
prática e mesmo confessadamente, confere primazia (prioridade ou
centralidade) ao pobre e à sua libertação. A “opção pelos
pobres” seria seu eixo ou centro epistemológico. Diz-se também
que o pobre ou a realidade do pobre é o “ponto de partida” dessa
teologia. Esta adota a “ótica do pobre”. Tudo isso é sabido e
é, aliás, o que caracteriza essa teologia.
A prioridade do pobre e
de sua libertação se tornou na TdL um pressuposto quase que
“evidente por si mesmo”. Aí está posto sem problemas. Contudo,
está posto de modo teoricamente indeciso e confuso, permitindo
ambigüidades, equívocos e reduções.
Sem nenhuma dúvida, na
TdL, a “opção pelos pobres”, como tema fundamental, está
fundada teologicamente (na Bíblia e na Tradição). Contudo, como
princípio epistemológico particular, conferindo uma perspectiva
determinada, permanece largamente impensada e não discutida nos
meios “liberacionistas”. Está aí posta sem advertência
epistemológica, gerando confusão tanto na teoria como na prática.
Neste ponto, a própria
linguagem “liberacionista” é sem rigor. Jon Sobrino, por
exemplo, fala dos pobres como a instância que dá a “direção
fundamental” à fé e como sendo seu “lugar mais decisivo”. Com
toda a evidência, estes dois qualificativos “fundamental” e
“decisivo” são jogados aí de modo descuidado. Pois não cabem,
em absoluto, aos pobres, mas sim à “fé apostólica transmitida
pela Igreja”, como lembra, de modo pertinente, a “notificação”
romana, questionando certos pontos da cristologia do referido teólogo
(n. 2). Pode-se, no máximo, adivinhar e talvez justificar o que quer
dizer Sobrino com aquelas expressões.
Agora, quando se
questiona o pobre como princípio e se pergunta se não é antes o
Deus de Jesus Cristo, a TdL costuma recuar e não nega. E nem
poderia, pois Deus está em primeiro lugar, por definição. Razão e
fé aqui se unem para afirma-lo. É, aliás, em teologia, o “óbvio
ululante”, que paradoxalmente se torna uma “evidência
ofuscante”. Não é que a TdL afirme “de pés juntos” a
primazia epistemológica dos pobres e de sua libertação. Também
não rejeita explicitamente a primazia de Deus e da fé. O que faz
problema na TdL é sua indefinição sobre uma questão que é
capital na esfera do método.
Se por “estatuto
epistemológico” se entende o assento firme e o quadro seguro que
conferem a uma disciplina científica a ordem de seu discurso (o
étimo “st” de estatuo e de epistemologia o indica), devemos
dizer que justamente isso parece faltar hoje à TdL.
E é de se temer que o
uso, nesta teologia, da linguagem analógica (libertação: social e
espiritual; pobre: econômico e existencial; Reino: de justiça e de
graça etc.), em vez de resolver, complique ainda mais a falta de
definição teórica, pelo fato de favorecer o caráter resvaladiço
do discurso, permitindo que o teólogo, acossado num plano semântico,
escorregue de modo sub-reptício para o outro. Aqui, a analogia, de
indispensável instrumento de articulação teológica, torna-se o
“subterfúgio da indecisão”.
Podemos, pois, dizer
que a TdL vive o seguinte “drama teórico”: o que é decisivo
permanece nela indeciso. Daí sua falta de consistência
epistemológica. Mas sem consistência epistemológica, como pode uma
teologia ser teoricamente consistente? E sem uma teologia
consistente, como pode ser consistente a pastoral que nela se apóia?
Ora, numa situação de
indefinição, a tendência é “para baixo”, e isso por razões
que não é o caso aqui de discutir, mas que as narinas de qualquer
teólogo podem perceber. Assim, em contexto de hesitação
epistemológica, entre Deus e o pobre, o pobre leva vantagem. Entre
salvação e libertação, esta é favorecida. Assim, com a
cumplicidade do nevoeiro epistemológico em que mergulhou, a TdL
introduziu furtivamente o prius teológico do pobre.
Em resumo: por falta de
uma epistemologia rigorosa e clara, a TdL labora em ambigüidades;
laborando em ambigüidades, cai no erro de princípio. E do erro de
princípio só podem provir efeitos funestos, como veremos em breve.
É um fato que a TdL é
toda feita na “ótica dos pobres”. Ela assim o diz e assim o
quer, e é também assim que praticamente o faz. É só analisar sua
produção mais recente, onde o viés epistemológico
“liberacionista” é mais evidente. A própria “pastoral da
libertação”, levada adiante especialmente nas “pastorais
sociais” e nas CEBs, é toda centrada nos pobres. É só assistir
aos encontros dos agentes e militantes da libertação, para perceber
como o bordão “pobres” domina o discurso. E o que ontem era viés
virou hoje vezo.
Por outro lado, que
seja a fé no Deus revelado o princípio primeiro da teologia, isso é
aceito sem maiores problemas na TdL. Mas esse princípio não opera
aí para valer. Representa apenas um dado pressuposto, que ficou para
trás, e não um princípio operante, que continua sempre ativo. É
um artigo de fé confessado, mas não uma perspectiva teórica que dá
a cor dominante a todo o discurso libertador. Que dê alguma cor a
esse discurso, é inevitável, já que se trata de teologia, mas é
uma cor desbotada, para não dizer simples matiz.
Ora, é este o nó do
problema. Pois o primado da fé, como não pode ser dado por
descontado do ponto de vista existencial, também não pode sê-lo do
ponto de vista epistemológico. O princípio-fé há de se manter
sempre ativo, e isso não só na prática da vida, mas também na
teoria teológica. Ora, sempre que esse princípio se manteve vivo,
na forma de sensus fidei, ele imunizou os bons teólogos da
libertação dos erros mais graves, como são os relativos ao
princípio reitor da teologia.
A inversão e a
conseqüente instrumentalização
Que acontece então na
prática teórica da TdL? Acontece uma “inversão” de primado
epistemológico. Não é mais Deus, mas o pobre, o primeiro princípio
operativo da teologia. Mas, uma inversão dessas é um erro de
prioridade; por outras, é um erro de princípio e, por isso, de
perspectiva. E isso é grave, para não dizer fatal.
Que o pobre seja um
princípio da teologia ou uma perspectiva (ótica ou enfoque), é
possível, legítimo e mesmo oportuno. Mas apenas como princípio
segundo, como prioridade relativa. Se assim é, a teologia que
arranca daí, como é a TdL, só pode ser um “discurso de segunda
ordem”, que supõe em sua base uma “teologia primeira”.
Contudo, não parece
que a TdL tenha essa consciência, pois se pensa, para todos os
efeitos, como uma teologia inteira à parte, substituindo ou
dispensando a “teologia primeira” e fundindo ou, melhor,
confundindo o nível “transcendental” com o “categorial”. Em
sua prática teórica, continua a pôr o “pobre” como seu
princípio, centro e fim. E ainda que não o faça com plena
consciência e consentimento epistemológico, o resultado, na
prática, é o mesmo, e isso, como dissemos, por causa da ambigüidade
com que esta questão essencial é aí tratada.
Ora, quando o pobre
adquire o estatuto de primum epistemológico, o que acontece com a fé
e sua doutrina no nível da teologia e também da pastoral? Acontece
a instrumentalização da fé em função do pobre. Cai-se no
utilitarismo ou funcionalismo em relação à Palavra de Deus e à
teologia em geral.
Que a fé seja útil,
isso é certo, mas essa não é sua parte maior nem a mais
importante. Uma fé usada principalmente de modo instrumental, sofre
fatalmente uma capitis diminutio: é submetida a uma seleção e a
uma interpretação de acordo com o que interessa à “ótica do
pobre”. Sem dúvida, a fé preenche plenamente também esta ótica,
mas também dela transborda por todos os lados, infinitamente.
Contra as críticas de
que estaria usando “olheiras ideológicas”, a TdL apela para
idéias como “margens de gratuidade” e “reserva escatológica”
para afirmar seu respeito à transcendência da fé. Na verdade, a
parte da transcendência é, nesta teologia, a parte menor e menos
relevante, a “parte de leão” cabendo, como sempre, à “leitura
libertadora” da fé.
O resultado inevitável
é a redução da fé e, em especial, sua politização. Fala‐se
aqui também, criticamente, da transformação da fé em ideologia.
Isso procede toda a vez que se dá à ideologia o sentido preciso que
lhe dá o Magistério: o de uma fé que decai de seu nível
transcendente para a imanência da política.
Gravidade da questão e
gravidade dos equívocos
Este é, pois, o ponto
fraco da TdL: a falta de clareza quanto ao alcance epistemológico da
opção pelos pobres. Esta é clara como tema, mas não como
princípio de constituição e construção teológicas. Ora, a falta
de clareza sobre o princípio leva necessariamente à falta de
clareza sobre o caráter teológico do discurso. Daí a indefinição
do atual discurso da TdL, balançando entre um discurso religioso e
um discurso social e político.
Nada manifesta melhor a
ambigüidade e confusão em que labora neste ponto a TdL do que a
polêmica que levanta toda a vez que se trata do “ponto de partida”
da teologia e da pastoral. Para a TdL é líquido e certo: o ponto de
partida tem que ser a “realidade dos pobres”. Mas não vê que
está aí confundindo dois sentidos de “ponto de partida”: como
mero começo (material, temático, cronológico ou ainda prático) e
como princípio (formal, hermenêutico, epistemológico ou ainda
teórico). Ora, “pobre” pode ser “ponto de partida” como
“começo” (começo de conversa), mas não como “princípio”
(critério determinante).
Por certo, “pobre”
pode ser também um princípio, fornecendo o que se chama de “ótica
dos pobres”. Mas, mesmo aí, trata‐se apenas de um princípio
segundo e regido, e nunca do princípio primeiro e regente, como
dissemos acima. Ora, a TdL, nesta discussão, cai nesse qüiproquó,
investindo inconscientemente seu ponto de partida, o pobre, com a
dignidade de princípio primeiro ou fundamental. Daí o equívoco
subseqüente de se tomar por uma teologia subsistente por si.
Mas, fazendo assim –
e aqui o repetimos – a TdL mostra que ignora o seu estatuto
próprio: o de ser precisamente uma “teologia de segunda ordem”,
que pressupõe teoricamente uma “teologia de primeira ordem”,
como a espécie pressupõe o gênero. Ela não se dá conta de que
para ser um bom teólogo da libertação não basta ser apenas
teólogo da libertação: precisa ser antes ainda, e principalmente,
“teólogo da fé” (com o perdão do pleonasmo).
Portanto, por falta de
rigor, clareza e vigilância epistemológica, a TdL se põe num plano
inclinado, escorregando sempre mais e caindo na falha mortal
apontada: o viés à inversão do princípio e a conseqüente
instrumentalização social, política e ideológica dos conteúdos
da fé. Digamos falha “mortal” porque, levada a termo, termina
pela morte da TdL, o que seria uma imensa perda para os pobres e para
a Igreja.
Como se vê, estamos
aqui diante de uma “questão de princípio”. Ora, uma questão de
princípio é, por definição, uma questão grave, cujas
conseqüências podem ser fatais. E numa questão grave não é
admissível uma posição problemática, nebulosa e equívoca. Uma
questão de fundamento é uma questão fundamental. Se o fundamento é
mal posto, todo o edifício é comprometido. Desse jeito, como pode
uma teologia ir para frente sem esbarrar continuamente em aporias?
Gravidade das
conseqüências
Se grave é, pois, a
questão e graves seus equívocos, graves são também seus
resultados. Pois o princípio informa todo um discurso. Quando se
começa uma caminhada na direção errada, quanto mais se avança,
mais se distancia do destino. E assim também os frutos da TdL, que
são reconhecidamente notáveis, acabam “pegando broca” e com o
tempo se deteriorando.
O resultado geral da
inversão prática de princípio (de Deus para o pobre) é
enfraquecer e mesmo esvaziar a identidade cristã, e isso em vários
planos:
1. No plano teológico.
A teologia vai perdendo seu caráter próprio, para adotar um tom
mais sociológico e pólítico, agora de tipo religioso‐pastoral.
Perde também fecundidade teórica, suas produções reduzindo‐se
cada vez mais a serem meras “variações sobre o mesmo tema”.
Pior, as grandes intuições da TdL viram chavões repetidos ad
nauseam, sobretudo na “vulgata militante” da TdL.
2. No plano eclesial. A
“pastoral da libertação” se torna um braço a mais do
“movimento popular”. A Igreja se “onguiza”. Então se esvazia
mesmo fisicamente: perde agentes, militantes e fiéis. Os “de
fora”, à exclusão dos militantes, sentem escassa atração por
uma “igreja de libertação”. Pois, para o compromisso, dispõem
das ongs, mas para a experiência religiosa precisam mais que de
simples libertação social. Ademais, por não perceber a extensão e
relevância social da atual inquietação espiritual, a TdL se mostra
culturalmente míope e historicamente anacrônica, ou seja “alienada”
de seu tempo.
3. No plano da própria
fé. Reduzida a ideologia mobilizadora, a fé vai perdendo cada vez
mais substância, até se esvaziar totalmente. O que sobra é uma
“hermenêutica cristã da existência humana”, tal como se
exprime de modo modelar na vulgata teológica chamada “rahnerismo”,
que subjaz à TdL e que aqui não é possível discutir. Em suma, a
substância da fé acaba em mero discurso, portanto, em qualquer
coisa de irrelevante. Pois, como se ouve nos meios “liberacionistas”,
o que importa não é tanto a Igreja ou Cristo, quanto o Reino.
A “prova dos frutos”
mostra que a TdL necessita de uma oportuna pulverização
crítico-epistemológica e, mais ainda, de adubar suas raízes.
Por que a inversão de
base da TdL: o choque do contato com a pobreza
Precisamos a esta
altura compreender, sem necessariamente aprovar, as razões que
levaram a TdL a se concentrar de fato no pobre, deixando na sombra o
Fundamentum. Aqui seremos sintéticos ao extremo.
A explicação mais
imediata é a mencionada: o descaso epistemológico e a inversão de
princípio que ele tacitamente autorizou. Daí que o pobre e sua
libertação tomaram o lugar primacial de Deus e de sua salvação
(sem falar ainda da inversão existencial que subjaz à
epistemológica e que tem a ver com o primado de Cris‐to na própria
vida).
Falando agora de modo
mais geral, pode‐se encontrar por trás dessa inversão um dado
histórico-existencial, sobre o qual a TdL insiste com razão ao se
referir à “experiência de Deus no pobre”: é o drama social da
América Latina, feito de pobreza, opressão, exclusão.
A “irrupção do
pobre” na Igreja abalou de tal modo a teologia que esta balançou
realmente em seus próprios fundamentos. Ocorreu então um caso de
hísteron próteron epistemológico: o depois veio antes. Não
precisava ser assim (de jure), mas foi assim (de facto). A fé aí
não pareceu bastante forte para manter ou então recuperar a pole
position. Daí que o princípio in se cedeu diante do princípio
secundum quid. O “regime das excelências”, onde Deus detém a
primazia, foi atropelado pelo “regime das urgências”, vindo o
pobre em primeiro lugar.
Deste modo, o
“urgentismo histórico” levou a investir o quanto pode, do
conteúdo da fé, no que foi tido como o opus maius: a libertação
histórica dos oprimidos. Daí também a tentação de “qualqueirismo
epistemológico” à la Feyerabend: anything goes em teologia, desde
que os pobres tirem disso vantagem.
Mas, como o Magistério
não cansa de lembrar, esse imediatismo, com todo o seu pathos,
redunda, a médio ou longo prazo, em outras formas de pobreza e
opressão. De fato, a história dá sobejos exemplos de que a
inconsistência veritativa se paga com a inconsistência
sociopolítica. Só a verdade liberta verdadeiramente (cf. Jo
8,32.36). Para se obter realmente a libertação é preciso mais que
apenas a libertação: é preciso – digamo-lo sem medo –
Salvação! Somente a Transcendência redime a imanência.
Cedimento ao espírito
da Modernidade
Existe, contudo, uma
razão mais ampla para explicar a concentração da TdL na questão
da pobreza e de sua superação. É o tributo que ela pagou, de modo,
aliás, bastante ingênuo, à decantada Modernidade e à sua
glorificada “revolução copernicana”. De fato, a Modernidade pôs
o homem no centro, em lugar de Deus. É a virada antropocêntrica: o
homem, com sua razão, liberdade e poder, como o novo axis mundi.
Deixemos aqui de lado a
tendência fática do homem pós-lapsário (e que não é só do
homem moderno) para essa inversão e também as tentativas teóricas
para justifica-la, como a dos Sofistas com seu lema “o homem,
medida de tudo”, refutados por Platão, bem como a do estóico
Varrão e sua “teologia política”, esse, contradito por Santo
Agostinho. À diferença dessas tentativas, a da Modernidade reveste
um caráter macroscópico, vale dizer, civilizacional.
O fato é que a
teologia cristã também cedeu à deriva antropocêntrica do espírito
moderno, e o fez sem clara consciência de seu preço para a fé. No
Protestantismo isso se deu com Schleiermacher e a “teologia
liberal”, controbatido por Barth com sua “teologia dialética”
(mas que não foi bastante “dialética” a ponto de incorporar os
legítimos desafios antropológicos levantados pela modernidade).
No Catolicismo, a
“modernização” teológica veio, primeiro, com o movimento
“modernista”, reprimido com a Pascendi de Pio X, e depois, sob o
nome de “virada antropológica”, com Rahner e sua “teologia
transcendental”, que teve seus êxitos, mas frente à qual grandes
teólogos, como De Lubac, Von Balthasar e Ratzinger, mantiveram uma
distância suspeitosa (sem contudo proceder a uma crítica cerrada).
Foi assim que a teologia se “modernizou”, antropologizando-se: o
homem como o sol, e Deus, seu satélite. Omnia ad maiorem hominis
gloriam, etiam Deus.
Acrescentemos que essa
antropologização modernizante teve, como seus grandes precursores,
Lutero com seu soteriologismo (Deus-para-mim) e Kant com seu
moralismo (Deus = postulado da ordem moral). Mas foi Feuerbach quem
levou esse processo até às últimas conseqüências quando anunciou
o primeiro princípio da “Filosofia do futuro”: “Os tempos
modernos têm por tarefa... a transformação e a resolução da
teologia em antropologia”. Eis aonde chega uma teologia que, na
necessária dança com a modernidade, em vez de levar o parceiro, se
deixa levar por ele.
Nesse contexto é
compreensível que também a TdL tenha embocado a rota
antropocentrizante do espírito moderno. Só que para ela o centro
não era mais simplesmente o homem, mas o homem pobre. O seu era o
antropocentrismo “da libertação”. Contudo, nela, também o novo
centro temático e perspético ameaçava suplantar o antigo e perene
Centro da fé, de maneira que, aqui, o lema da modernidade ressoaria
assim: omnia ad maiorem pauperis gloriam, etiam Deus.
Da inversão
antropocêntrica, seguiu-se a instrumentalização geral a que a
Modernidade submeteu todos os valores. Nisso estão de acordo Weber e
os pensadores da Escola de Frankfurt, com sua idéia de “pensamento
instrumental”, assim como Heidegger com sua teoria do Gestell
(instalação, dispositivo). De tal intrumentalização não escapou
sequer a religião. No plano econômico, é por demais conhecida a
manipulação que ela sofreu nas mãos do Capitalismo, o rebento mais
robusto da Modernidade. Agora, no plano sociopolítico, a religião
se torna mero instrumentum regni, como é claro em Hobbes e Rousseau.
Já o swingliano Erasto será o primeiro teólogo a legitimar a
submissão da religião ao poder de Estado.
Quanto à TdL, não se
viu livre da tentação de politizar a fé, na medida em que
encorajou os cristãos para a luta social sob a insígnia, de sabor
maurrasiano, libération d’abord. Aqui o Cristianismo é tomado
como instrumentum regni dos pobres, mas nem por isso deixa de ser
usado instrumentalmente. Nessa ótica, a fé é vista, antes de mais
nada, como função da libertação dos pobres.
A história mostra que,
caminho andando, a religião politizada foi-se dissolvendo na própria
política, de tal modo que esta absorveu a substância daquela,
tornando-se ela mesma religião: Ersatzreligion. Os totalitarismos
não passam da expressão extrema da “secularização da religião”,
ou seja, de sua radical antropologização política, como viu, entre
outros, K. Löwith. Por sua parte, C. Schmitt mostrou que a política
moderna é, no fundo, religião secularizada. O Estado seria um deus
visibilis, que Hobbes já representara na figura de Leviatã.
É assim mesmo: o
destino fatal de quem se põe no lugar de Deus e o usa para seu
benefício é tomar-se por deus. De modo análogo, uma TdL que
“consome” fé cristã sobretudo para a libertação, se arrisca
de “consumir” essa fé e também a si mesma. A “libertação”
pode devorar a “teologia”.
O sobrenaturalismo da
fé: responsável pela mundanização da fé
Mas, por que a
Modernidade antropologizou e, mesmo, politizou tudo, inclusive a fé
cristã? Como mostrou especialmente H. Blumenberg, isso se deu, em
boa parte, em reação violenta contra o “totalitarismo teológico”
da Igreja de cristandade, seja lá como esse totalitarismo tenha sido
chamado: sobrenaturalismo, divinismo, augustinismo político,
espiritualismo, fundamentalismo ou integrismo.
Portanto, o
cristianismo histórico tem, por seu extremismo “divinista”,
parte de responsabilidade no extremismo “mundanista” da
Modernidade, que lhe é diametralmente oposto. Ademais, com o favor
da abertura conciliar, o extremismo moderno conseguiu entrar, de
forma irrompente e, mesmo, rupturista, no seio da própria na Igreja.
Por conseguinte, a
“irrupção do mundo” no espaço eclesial envolveu o risco de
“mundanização” da teologia, assim como a “irrupção dos
pobres” o fez em relação à teologia latino-americana. Só que
neste último caso o processo se deu à esquerda e o risco foi em boa
parte contido sobretudo pelo vigor do sensus fidei tanto dos simples
fiéis como dos pastores.
Mas, com a mudança
epocal que está se abrindo, após a “tese” da Cristandade e a
“antítese” da Modernidade, abre-se também para Igreja e a
teologia a chance histórica de uma “síntese”: a harmonia entre
fé e mundo e, em particular, entre fé cristã e política de
libertação.
Fecho desta primeira
parte
Encerrando esta
primeira parte, queremos relembrar que o questionamento crítico
feito até agora acerca dos fundamentos da TdL não entende refutar
essa corrente, mas repô-la em seus fundamentos originários. Pois só
assim poderá ser “salva”, “salvando” consigo os preciosos
frutos que produziu, especialmente a opção preferencial pelos
pobres e a fé como força de libertação.
Como se vê de
imediato, esta primeira parte é apenas a pars destruens de nossa
reflexão, ainda que os princípios de solução tenham sido
claramente apontados. Para a pars construens, queremos recorrer a
Aparecida. As razões dessa opção ficarão claras pelo que se dirá
em seguida.
II. Aparecida: a
Limpidez do princípio
Apreciação geral do
Documento e razão de sua chamada em causa
Digamos, para começar,
que Aparecida recapitula e leva à maturação toda a caminhada da
nossa Igreja latino-americana e caribenha. É uma “surpresa do
Espírito” (nada fazia prever este resultado magnífico), um
“milagre de Nossa Senhora Aparecida” (que, a pedido do Papa,
assumiu para valer a direção dos trabalhos), assim como um “dom
do Pai das luzes” em favor de nossas igrejas. Esse Documento faz
honra ao episcopado de nosso Continente.
Na base do sucesso do
texto episcopal estão, entre outros, estes fatores: o amadurecimento
da nossa Igreja latino-americana, tanto em seus pastores, como em
seus teólogos e em suas comunidades eclesiais; o magistério de
Bento XVI, especialmente sua mensagem na abertura da Vª Assembléia;
e, sobretudo, o sopro do Espírito Santo, invocado por tantos fiéis
de nossas comunidades “em união com Maria, mãe de Jesus” (At
1,14).
Mas o que nos leva a
recorrer ao Documento de Aparecida, no que tange ao questionamento da
TdL, é o fato de que esse texto é uma límpida demonstração de
como é possível resolver a contento a vexata quaestio aqui
levantada: a articulação correta entre fé e ação libertadora.
Como vimos, esta relação, a TdL não a resolveu de modo
satisfatório, e isso porque partiu de um princípio equívoco, para
não dizer errôneo. Já Apareci‐da resolveu essa relação,
articulando‐a de modo feliz, e isso justamente por ter partido do
princípio claro e correto, como mostraremos em breve.
Instrutivo confronto
entre Aparecida e TdL
É útil estabelecer
aqui um breve confronto entre a metodologia da TdL e a de Aparecida.
Podemos, de modo extremamente conciso, apresentar este confronto
assim: a TdL parte do pobre e encontra Cristo; Aparecida parte do
Cristo e encontra o pobre. Dizer que são metodologias reciprocamente
complementares é pouco. É preciso também e principalmente ver as
respectivas diferenças e a hierarquia que se impõe entre as duas.
Efetivamente, a
metodologia de Aparecida é uma metodologia originária e principal,
enquanto a outra só pode ser derivada e subalterna. Por isso também
a primeira é mais ampla. Pois, se Bento XVI foi teologicamente
certeiro quando, abrindo a V Celam, declarou: “a opção pelos
pobres está implícita na fé cristológica”, então fica claro
que o princípio-Cristo inclui sempre o pobre, sem que o
princípio‐pobre inclua necessariamente Cristo. Por outras
palavras: para ser cristão é preciso absolutamente se comprometer
com o pobre: agora, para se comprometer com o pobre, não é, em
absoluto, necessário ser sempre cristão.
Além disso, a
metodologia de Aparecida é mais lógica: de Cristo vai-se
necessariamente ao pobre, não, porém, necessariamente do pobre a
Cristo. Por tudo isso, a metodologia de Aparecida pode incluir a da
TdL e pode funda-la, enquanto que a recíproca não é verdadeira.
A questão decisiva: o
ponto de partida formal ou fundante
Lembremos que nosso
questionamento nesse trabalho gira todo inteiro em torno do
principium ou do fundamentum da TdL. Ora, qualquer teologia, para se
renovar e mesmo corrigir, precisa sempre “voltar à fonte”, que é
o mesmo dizer: retornar a seu princípio vital, à sua raiz.
Pois bem, a fonte
originária da teologia não é outra senão a fé em Cristo. É
verdade: “só Jesus salva”, e “salva” inclusive, em teologia,
a opção pelos pobres. Aí está o principium grande de tudo no
Cristianismo, tanto na vida, como no pensamento. E desta arché, a fé
em Cristo, abre-se a perspectiva verdadeira de toda teologia
autenticamente cristã: ver tudo “à luz da fé”, por outras, à
luz do Deus de Jesus Cristo. Aristóteles chama, às vezes, o
“princípio regente” de kyrios. Ora, o kyrios da Teologia não
pode ser outro senão o Kyrios da fé, da Igreja e da História. Mas,
como se processa tal “senhorio epistemológico” no discurso
concreto da teologia?
Ora, é precisamente
nesse ponto que o Documento de Aparecida nos parece modelar. Nele,
tudo parte de Cristo e, a partir dessa Arché, se recuperam todas as
grandes questões que desafiam a Igreja, inclusive (e principalmente)
a questão dos pobres e do compromisso libertador (e se recupera, ao
mesmo tempo, a problemática atual da Sinnfrage e da busca do divino,
de modo, assim, que o Documento “mata dois coelhos com uma cajadada
só”).
E mesmo quando a V
Conferência parte dos pobres, seguindo o método “ver, julgar e
agir”, faz isso apenas materialmente (para contentamento dos TdL),
pois formalmente parte sempre, antes ainda, de Cristo. Por outras
palavras, a ótica dos pobres se põe essencialmente dentro de uma
ótica anterior e maior, que é a da fé cristológica. Esta última
não é aí apenas pressuposta, mas sustenta o discurso pastoral por
inteiro, conferindo-lhe sua forma vital e mesmo lingüística. É
assim que o Documento sempre fala de Cristo em “um tom mais alto”
de como fala dos pobres, para usar uma feliz ex‐pressão de Barth.
Em verdade, a feliz
articulação que Aparecida estabeleceu entre fé e compromisso,
partindo do primeiro termo, já estava dada em filigrana no próprio
lema daquela Assembléia: (1) “Discípulos (2) e Missionários de
Jesus Cristo, (3) para que n’Ele nossos povos tenham vida”. Os
bispos só tiveram o trabalho de desenvolver em toda a sua amplitude
os articuli aí postos.
Vamos analisar logo
abaixo, como o episcopado latino-americano e caribenho, in actu
exercito de seu discurso pastoral, se desincumbiu desta tarefa. Para
tal análise, que método deveremos usar? Descartamos aqui, de
entrada, como intelectualmente desonesta, uma “hermenêutica
garimpeira”, que só pega o que quer pegar, perdendo o essencial do
Documento.
Nosso método buscará,
antes, destacar o andamento geral do Documento, ou seja, sua lógica
interna, assim como os princípios que dão ao texto sua estruturação
e seu dinamismo. Com o “principial”, esperamos colher o
“essencial” da mensagem da Vª Conferência.
Acrescentemos que
constatar “sombras” no magistério de Aparecida é um ato quase
perfunctório de todo o teólogo que se quer crítico. Mas, em
relação à problemática vertente, elas nos parecem tão
irrelevantes que aqui as relevamos.
1. Ponto de arranco: fé
como encontro com Cristo
O Documento começa
bem. Começa por onde devia começar. “Começa pelo começo”:
Cristo, a fé em Cristo, o Salvador, o Senhor, o Filho de Deus, o
Amor do Pai manifestado ao mundo.
Explicitemos esse
primeiro ponto. A fé em Cristo é aí apresentada como “experiência
de encontro”. “Encontro” é a grande categoria, repetida mais
de cinqüenta vezes. Ela define a essência íntima da fé cristã.
Fé é encontro de pessoa a pessoa, encontro vivo com o Cristo vivo.
O Documento diz mais:
diz que tal encontro é necessariamente transformador. Transforma
toda a vida, em todos os seus níveis: pessoal, comunitário, social,
e ambiental-ecológico.
Comentemos. O “ponto
de partida” formal ou determinante do Documento de Aparecida não é
a realidade, a história, ou a práxis, ou ainda o pobre e o
sofredor. Mas também não é a doutrina da fé, os princípios
dogmáticos. O ponto de partida é Aquele que é, nas palavras da
Escritura, o próprio “Princípio”, o “Alfa” de tudo, o
“Primogênito”, o “Príncipe” em absoluto.
O texto de Aparecida
sublinha tão fortemente o primado da opção por Cristo que não
quis se deter no lado negativo que existe realmente no mundo e mesmo
na Igreja. Quis ser só a favor: a favor de Cristo, dos afastados da
fé, dos pobres e de sua libertação.
A respeito da fé em
Cristo, o Documento usa expressões que entendem tolher à fé o
sentimento de banalidade com que vem freqüentemente envolta,
devolvendo-lhe o sabor nascivo e a aura de excelência. Nessa linha,
afirma que a fé é a “grande novidade” (n. 348), novidade
perene, que não perde o viço; é a Boa-nova permanente da Igreja,
mensagem sempre nova; é a “prioridade n° 1” da Igreja; é a
grande “descoberta”, a “revelação”, o “acontecimento”,
o “tesouro” e a “pérola preciosa” que a Igreja possui e que
oferece ao mundo.
Está aí o princípio
estruturante, e não só genético, de toda a vida da Igreja: de sua
fé e de sua missão. Esse é o Fundamento de tudo. É a Fonte de
água viva, jorrando permanentemente na Igreja e transbordando para o
mundo. Nessa linha, o Documento declara que, em toda a vida da
Igreja, se há de começar e “recomeçar de Cristo” (n. 12, 41 e
549).
Pondo Cristo no
princípio do Documento, a Celam optou por uma embocadura plenamente
teológica. E vazada em linguagem existencial. Que suscita simpatia e
arrebata de imediato o consenso. Portanto, uma grande “jogada” de
nossos Pastores, um magnífico tento, logo na entrada!
Que implicações
concretas (existenciais e pastorais) têm o fato de nossa Igreja
assumir ou, melhor, reassumir este “ponto de partida”?
Implica antes de tudo
favorecer de todas as formas uma relação inter-pessoal, de amizade,
de intimidade, de amor‐paixão pela pessoa de Cristo. É isso
precisa‐mente que significa ser “discípulo”. Aqui, em verdade,
somos remetidos à esfera da espiritualidade ou da mística.
Tal prioridade não
vale só “para os outros”, como tendem a pensar os agentes de
pastoral. Vale antes para cada cristão. A evangelização é, em
primeiro lugar, auto-evangelização.
E nessa interpelação
de encontrar Cristo através da oração, da Palavra, da Eucaristia,
entram também os próprios Pastores (n. 177). Os bispos se
auto-incluem (n. 186) e incluem também os outros pastores: os padres
(n. 199), os párocos (n. 201), os seminaristas (n. 319) e os agentes
de pastoral em geral (n. 352).
Impressiona e comove
essa forma auto‐implicativa de falar de espiritualidade. É coisa
nova e mesmo estranha num documento pastoral, que se dirige aos
outros, ao povo, sem envolver normalmente os emissários.
Para operacionalizar
pastoralmente esse “encontro com Cristo”, conteúdo existencial
da fé, Aparecida oferece uma proposta concreta para todo o
Continente (n. 277). Tal proposta, segundo o texto, deverá envolver
todas as estruturas pastorais. Trata-se de um preciso “itinerário
formativo (todo o cap. VI). Tal itinerário tem seu coração na
mistagogia, isto é, numa primeira “iniciação à vida cristã”
(n. 286-294).
O objetivo desse
itinerário é, como diz o próprio termo “iniciação”, iniciar
a pessoa ao mistério de Cristo, ou seja, leva-la, como pela mão, ao
encontro direto com Cristo. Como? Através da escuta orante da
Palavra, do exercício da oração, do amor à Eucaristia.
O primeiro efeito
interior do Encontro é a conversão: o tornar-se “nova criatura”,
filho de Deus. Isso é vida nova, coração novo. Eis o que é um
cristianismo de “iniciados”, de gente que “experimentou”
Algo, de “místicos”, como queria Rahner. É daí que irrompe,
quase automaticamente, a missão e o compromisso no mundo, como
veremos mais adiante.
Tal é o dado
originário da vida da Igreja. Originário e também original, pois
dá originalidade a tudo na Igreja: à palavra, à sua missão e ao
seu empenho por justiça. Essa entrada cristológico-iniciática,
além de ser acertada do ponto de vista teológico, é acertada
também do ponto de vista pastoral.
Pois, nosso catolicismo
popular, embora exaltado em Aparecida (n. 258‐265), inclusive como
o “tesouro mais precioso que tem o povo”, é um catolicismo feito
mais de tradição que de convicção pessoal, mais de cultura que
experiência espiritual. Daí sua vulnerabilidade aos avanços, tanto
das “seitas” e de seu proselitismo, quanto do atual “secularismo”
e de suas seduções sensual-materialistas. E daí também o déficit,
que, desde Medellín, diminuiu, mas que permanece ainda grande, em
termos de consciência social e de compromisso político.
E mesmo o Catolicismo
das minorias ou elites (bispos, padres, freiras, agentes, militantes,
intelectuais) é mais doutrinário que experiencial, mais ideológico
que personalista, mais gnóstico que existencial, mais moralista que
místico, mais muscular que cordial, enfim, mais prático que
teopático.
Notemos ainda a
linguagem, estilo ou tom do Documento. Isso também foi acertado.
Trata‐se de uma linguagem comunicativa, que desperta a alegria de
crer, o entusiasmo de anunciar e o ardor de lutar. Além disso, é
bastante homogênea. Sua unidade interna provém da unidade de seu
centro vivo, que é Cristo, que é a fé viva em Cristo.
Enfim, é uma linguagem
espiritual, ungida, alvissareira. É nova, original, justamente por
ser originária, isto é, por nascer do estupor de um Encontro. Ela
se mostra congenial a seu tema, “exprimindo de modo espiritual as
coisas espirituais”, como queria S. Paulo (1Cor 2,13).
Como a Assembléia
episcopal chegou a tal linguagem, de verdadeira comunicação
evangélica? Não foi por um esforço meramente literário, que se
trairia por sua artificialidade. Foi antes porque esta linguagem
emanou da vida e da experiência de nossa Igreja, que os pastores e
teólogos-assessores aí estavam interpretando. Uma linguagem dessas
não se consegue em três semanas. É uma questão de vida. Ela fala
da vitalidade espiritual e pastoral de nossas igrejas e de seus
pastores.
Explicitemos
rapidamente alguns dos traços mais evidentes da linguagem de
Aparecida:
– é leve: lê‐se
bem; não é pesada ou enfadonha;
– é clara: límpida,
compreensível;
– é positiva:
prefere o incentivo à crítica, embora não deixe de ser realista e
profética a seu tempo; usa de bom grado termos evocativos como:
alegria, prazer, entusiasmo, ardor, audácia, felicidade, plenitude,
beleza, maravilha, vida (muito), amor, esperança, graça, ação de
graças, louvor, bênção, tesouro, riqueza, dom, presente etc.;
– é estimulante:
animadora, levando à adesão concreta; é prática, pastoral e
propositiva;
– é serena: e
segura; faz “sentir firmeza”; infunde fé no poder da fé; mas
sem falsa segurança ou presunção, porém com humildade;
– é equilibrada:
harmoniosa, ordenada, bem articulada.
Concluindo esta parte,
digamos que o achado genial e inspirado dos bispos foi ter partido
formalmente de onde parte e só pode partir a vida cristã: de
Cristo, da fé em Cristo, do encontro vivo com Cristo.
“Ora – dir-se-á –,
isso é o óbvio. É a evidência mesma”. Mas eis a grande ilusão:
o déjà vu em relação ao Cristianismo; achar que já se conhece a
fé cristã; que ela já não oferece mais nenhuma novidade; que não
precisa mais ser, a cada vez e sempre, reencontrada em sua
originalidade perene. Os bispos não: como os profetas (e os poetas e
as crianças), viram o “óbvio”, proclamaram o “evidente”. Aí
está sua genialidade.
Repitamos: Cristo,
encontrado e seguido, é o princípio determinante de tudo o mais. O
que os bispos dirão em seguida será todo informado e moldado por
ele, como por um vento que verga todo um trigal na direção em que
está soprando; como por um fermento que leveda toda a massa; como
por um sal que dá gosto a toda a comida.
2. Os desdobramentos da
fé: evangelização e compromisso
Toda a vida da Igreja
flui do encontro com Cristo, da comunhão com Ele através da fé e,
especialmente (e nisso insiste Aparecida), da Eucaristia. Portanto, a
missão da Igreja provém do coração da fé. O encontro com Cristo
impele necessariamente a Igreja para o mundo.
Essa missão tem dois
momentos. O primeiro é o anúncio de Cristo, como Aquele que enche o
coração humano de alegria e paz, e enche a vida de sentido (aliás,
a “questão do sentido” é recorrente no Documento, sendo
tematizada nos n. 36‐42). Pois, quem arde com o fogo de Cristo,
ilumina e aquece naturalmente os outros. Portanto, o primeiro
desdobramento da fé é a evangelização direta.
O segundo momento é o
compromisso no mundo, na sociedade. É tornar-se “diante dos
homens” luz de verdade e fermento de justiça. Aqui se situa toda a
tradição profética e libertadora da nossa Igreja latino-americana.
Se a primeira é propriamente a “missão religiosa” da Igreja, a
segunda é especificamente sua “missão social” (cf. GS 42).
Notar a lógica entre a
fé e a missão, seja ela evangelizadora, seja social; entre o
encontro com Cristo e a tarefa de anuncia-lo às pessoas e torná-lo
presente na ordem social. A lógica é esta: o segundo termo é
sempre um desdobramento do primeiro. A prática da missão, tanto
religiosa como sociopolítica, decorre da experiência da fé, assim
como o rio flui da fonte, como a luz irradia do foco, e como a flor e
o fruto provêm finalmente da raiz da árvore. Não há entre esses
termos oposição nenhuma e nem mera justaposição, mas justamente
desdobramento ou decorrência.
Explicitemos, a seguir,
essas duas formas de missão, respectivamente evangelizadora e
social.
2.1. Primeiro
desdobramento da fé: a evangelização
Uma pessoa cheia de
Cristo passa logo a anuncia-lo, como por transbordamento. O Documento
fala da missão evangelizadora em termos extremamente positivos:
trata-se de irradiar a Luz recebida, de comunicar a Alegria do
encontro, de partilhar a Vida do amor (n. 145).
Voltemos a sublinhar a
lógica que preside a missão de evangelização. Esta deriva como
que espontaneamente do encontro com Cristo. É sua primeira
conseqüência para fora. Da fé flui naturalmente o anúncio
evangélico e evangelizador. O “discípulo” torna-se
necessariamente apóstolo ou “missionário”, para evocar o lema
de Aparecida.
Como se vê, a missão
aqui não tem nada a ver com endoutrinação, propaganda ou
preselitismo. É antes irradiação. É um “atrair”, como ímã,
para Cristo, o verdadeiro “pólo norte do mundo espiritual”, como
dizia Péguy.
Ao mesmo tempo em que
proclama a alegria de crer, o discípulo‐missionário aprofunda,
mediante a catequese, a “doutrina cristã”, ou seja, um
conhecimento mais orgânico e completo da pessoa e da obra de Cristo.
Como no plano do
“encontro de fé com Cristo”, também no da evangelização,
Aparecida apresenta uma proposta concreta, que exige o envolvimento e
a re‐estruturação de todas as pastorais: é a “Grande Missão
Continental” (n. 362-364).
Trata‐se de passar de
uma pastoral passiva, esperando que o povo venha a nós, para uma
pastoral ativa, que “sai” ao encontro dos distantes (n. 370), dos
que estão fora da comunhão de vida com Cristo, especialmente da
grande massa dos católicos afastados. Esse não é um trabalho
pontual, mas um esforço contínuo: é a Igreja que se põe, por
inteiro, em estado permanente de missão evangelizadora.
O que motiva essa
missão não é o intento de “reconquistar” os membros que a
Igreja teria “perdido”, nem é de fazer “concorrência” com
outros grupos religiosos. Trata-se mais simplesmente e mais puramente
de comunicar a vida de Cristo e de partilhar a alegria do Evangelho.
Que isso faça aumentar o rebanho católico é certamente um efeito
feliz e mesmo esperado, mas não é a finalidade principal da missão
continental. A glória da Igreja é a glória de Cristo.
2.2. Segundo
desdobramento da fé: o compromisso de vida
Trata-se aqui do
compromisso no campo ético, que, além da vida pessoal envolve a
vida social. O compromisso na sociedade, “marca registrada” da
pastoral latino-americana, é aqui retomado com novo vigor, vigor que
no texto tem mais de teologia que de retórica.
Como é retomado o
compromisso social? A resposta aqui é importante, pois diz respeito
ao ponto verdadeiramente crucial do debate que levantamos na primeira
parte.
Ora, no Documento, o
compromisso social é retomado “a partir da experiência de fé em
Cristo”. Portanto, aí o compromisso libertador deriva diretamente
do seguimento. Quem ama Cristo, ama também os irmãos, especialmente
seus preferidos, os pobres e todos os excluídos, cujos rostos o
Documento descreve em várias passagens (n. 65, 402 e, especialmente,
407-430).
Notar igualmente aqui a
lógica que anima o compromisso: ele arranca do encontro com Cristo.
Quem encontrou Cristo vai ao encontro do irmão pobre e sofre‐dor.
Aqui, o social deriva do espiritual.
É, aliás, a lógica
que se vê também no NT, especialmente em João e nas cartas de
Paulo. Ela se encontra inteira na fórmula: “Se sois luz, então
comportai-vos como filhos da luz” (Ef 5,8). Portanto, essa lógica
não é a dos bispos ou de quem quer que seja. Ela se funda na
própria natureza da Revelação, que consiste numa vida nova, a qual
leva naturalmente a um novo agir.
Com sua idéia de uma
ação que jorra “da superabundância da vida contemplativa”, S.
Tomás não diz outra coisa (cf. ST II‐II, q. 182, a. 1, ad 3).
Nietzsche, por sua parte, pregava a “virtude dadivosa”,
insistindo nu‐ma ação que fosse fruto da riqueza interior e não
da carência pessoal (Zaratustra, parte I, último cap.). Mas, para
que citar mais autores? Essa é a lógica das coisas mesmas: agere
sequitur esse: a ação flui do ser. Aparecida nada mais fez que
aplica-la à fé e à pastoral.
Sem dúvida, permanece
a incontornável questão das mediações concretas entre fé e
política, mas elas só se referem à forma externa da ação, não à
sua substância íntima. A fé é chamada a ser a “alma” de toda
política, mesmo em sua estrutura própria. A rigor, a política é
autônoma, não autárquica. Isso significa que, apesar de gozar de
leis próprias, a ação política permanece sempre dependente de seu
Criador e, portanto, aberta a um investimento religioso. Deste modo,
entre fé em Cristo e vida social não há mais paralelismo e, menos
ainda, contradição.
Nesta ótica, plena e
claramente espiritual, de tipo existencial e interpessoal, o
compromisso de libertação vem todo impregnado de Cristo, que se
encontrou no caminho da vida e que se quer amado na vida e reinando
na sociedade. Deste modo, a fé informa e anima de alto a baixo toda
a missão da Igreja, inclusive a sociopolítica.
Isso vale de modo todo
particular para os cristãos leigos, que têm no social sua arena
própria de prática direta e concreta da fé. Nisso insiste
Aparecida, destacando, como dever pastoral da Igreja, a necessária
formação política do laicato (n. 501-508). Mas que toda a prática
social dos leigos se desenvolva “com Cristo, por Cristo e em
Cristo”. É o sentido da cláusula “n’Ele”, introduzida pelo
Papa na segunda parte do slogan da Vª Celam: “Para que n’Ele
nossos povos tenham vida”.
De resto, o tema “vida”
é a grande idéia que estrutura todo o Documento em suas três
grandes partes, sendo nomeado no título de cada uma delas. A
tripartição é feita de acordo com a metodologia, já clássica na
América latina, do “ver, julgar e agir”, metodologia essa que,
repitamos, tem antes uma validade material (temática e expositiva)
que propriamente formal (determinativa e fundadora).
Igualmente, é na
perspectiva da fé‐encontro que vem reassumida a irreversível
“opção preferencial pelos pobres” (n. 391-398, esp. 396). Quem
encontra Cristo não pode não encontrar o pobre. O Documento insiste
na qualidade “evangélica” desta opção, no sentido de que deve
ser toda embebida do espírito de Cristo. Por isso mesmo, tal opção
é apresentada à distância de todo exagero ou “ideologismo”,
chame-se isso politicismo, militantismo, ativismo ou mesmo moralismo.
Aparecida não evita o
vocabulário da “libertação”, mas o usa escassamente, talvez
pelas conotações ambíguas e polêmicas de que vem cercado.
Recupera, contudo, seu conteúdo sob outros conceitos, como promoção
social, amor feito justiça, transformação das estruturas, pobres:
sujeitos de direitos etc.
De resto, a Vª
Conferência não se detém nas dificuldades e crises de nosso tempo,
nem na complexidade da sociedade atual com os imensos riscos da
globalização. Apostam, antes, no Cristo vivo, presente na Igreja,
com sua inspiração e sua força. Poderíamos dizer: os bispos “põem
fé na Fé”.
À diferença dos
outros dois pontos anteriores, para a parte social, Aparecida não
ofereceu uma proposta continental concreta. Embora não deixe de
oferecer indicações práticas, a V Assembléia parece apostar, mais
que tudo, na “fantasia da caridade”. Esta é uma provocação à
intervenção criativa e responsável dos cristãos leigos e também
dos teólogos da libertação, enquanto ambos buscam “encarnar”,
respectivamente na teoria e na prática, a Palavra eterna na “carne”
do tempo.
Saída
Após todas essas
observações críticas (na primeira parte) e propositivas (na
segunda parte), como fica a TdL? A nosso ver, esta parece, grosso
modo, estar ora se encaminhando na direção certa.
Observa-se, em primeiro
lugar, que boa parte da TdL se incorporou naturalmente na teologia,
sem mais. Ela passou, assim, a fazer parte integrante da “teologia
normal” e do discurso da Igreja, em geral. Insere-se no órganon da
teologia geral como seu “dispositivo social”. E continuará a se
reabsorver lentamente no álveo da teologia global, levando aí toda
a sua substância, como um afluente no rio principal. Assim também
foi com os movimentos bíblico e litúrgico, que, de movimentos
particulares, antes do Concílio, se tornaram depois bens comuns de
toda a Igreja.
Que a TdL possa
continuar, mesmo incorporada organicamente na teologia sine addito,
arvorando a etiqueta que a designa, isso pertence ao legítimo
pluralismo teológico. Poderá assim lembrar a toda teologia seu
dever de integrar sempre mais a dimensão sócio-libertadora da fé,
protagonizada pelos pobres. É assim também, aliás, que subsistem,
na harmonia do corpo eclesial, os grupos mais diversos, cada um
privilegiando um carisma particular.
Mas é também possível
que parte da TdL resista e insista em se entender como uma teologia
integral à parte, construída a partir de princípios próprios. Mas
então será difícil evitar certa polarização em relação à
teologia em geral, quando nada porque a inevitável desambigüização
dessa corrente porá em evidência o caráter aporético de seu
método. Pois o pobre não poderá agüentar por muito tempo nas
costas o edifício de uma teologia que o escolheu por base: cederá,
antes de ser esmagado por ela, como a história não se cansa de
mostrar.
O certo é que a
evolução teórica da TdL não se dará de modo automático, graças
à simples “força das coisas”. Pois nenhuma situação histórica
resolve por si só problemas teóricos. Problemas teóricos se
resolvem teoricamente. Quando se tenta resolve-los por mera remoção
(mediante repressão ou então por simples descaso), reaparecem como
erva daninha, cuja raiz foi deixada.
Daí também a razão e
a intenção destas linhas. Buscando rigorizar a discussão sobre o
estatuto epistemológico da TdL e procurando assim esclarecer e
resolver sua problemática de fundo, talvez possam contribuir a
dissolver a polarização gerada por ela e favorecer, deste modo, a
catolicidade sinfônica da teologia.
Isso só poderá
redundar na felicidade dos pobres, na glória de Deus e na confusão
do diabo (cf. LG 17).
Curitiba (PR), Brasil,
agosto de 2007
Nenhum comentário:
Postar um comentário